• Falando de Ibiassucê – Por Luzmar Oliveira

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    11/08/2016 - 20:00


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    Ainda menina, conheci Ibiassucê. Situada a nove "léguas" de Caetité, seu acesso era por uma estradinha de terra que se entroncava com a BR 430. Hoje essa estrada é a BA 617, e a distância entre as duas cidades é de 44 km.

    Ali morava a minha irmã mais velha, Lourdes (ou Madrinha Lourdes), casada com José da Silva Pinho. Eles tiveram oito filhos, sendo que o mais velho, Carlinhos, foi meu irmão de leite, ou seja, mamou em minha mãe na mesma época que eu.

    Tinham uma pequena fazenda na estrada de Caculé e moravam em Ibiassucê, à época, ainda vila (ou distrito). No quintal da sua casa havia uma coisa da qual jamais me esqueci, pois era, aos meus olhos de criança, linda! Era uma videira esparramada em um caramanchão de madeira ("latada"). Era delirante sua beleza. E tentadores seus cachos de uvas roxas. Quando ameaçavam amadurecer, minha irmã colocava um saquinho de pano muito limpo envolvendo-os, para protegê-los das intempéries, dos passarinhos... e de nós, crianças loucas para devorá-los! Como poderia esquecer esse quadro delicioso?

     

    No resto do quintal havia, além de hortas, muitas plantas ornamentais recheadas de cravos (que ficavam numa armação mais alta), dálias, rosas, margaridas, crótons e muitas outras.

    Ao fundo tinha um muro separando outra parte do quintal, onde se criava animais, como porcos e galinhas, além de uns dois ou três bodes e uma parelha de carneiros. 

    No beiral do telhado havia uma calha feita de flandres e uma bica para escoar a água da mesma. Embaixo dela, um Tonel de metal para aparar as águas das chuvas. Vou explicar melhor: Ainda não havia ali água encanada. A mesma era trazida de um rio que passava nos arredores. Mulheres e homens traziam em latas ou baldes, equilibrando-os na cabeça com uma rodilha ("Lata d'água na cabeça, lá vai Maria..."). Rodilha é um pedaço de pano enrolado em caracol, que se coloca entre a lata/pote e a cabeça. Lembram-se do ditado: "Vá procurar sua rodilha onde você quebrou o pote"?

    O precioso líquido também era conduzido em tonéis de madeira, sobre um carro também de madeira, puxado por uma parelha de carneiros.

    Na verdade, devido à diferença de idade entre mim e Madrinha Lourdes, seus filhos mais velhos eram como meus verdadeiros irmãos, pois crescemos juntos. Refiro-me a Carlinhos e Meire, meus companheiros de infância, meus amigos. A gente tinha uma relação normal, com brincadeiras e brigas também. Carlinhos era muito sério, mas Meire era alegre e brincalhona.

    Naqueles tempos todas as casas tinham, anexo à cozinha, uma "despensa", espécie de mine almoxarifado, onde se guardava os alimentos crus e as frutas, bolos e doces. No meio daquela, havia um girau feito em madeira. Em cima, durante todo o ano, encontrávamos muitas laranjas, bananas e melancias. Meu cunhado os comprava em quantidade, tipo "carro de boi fechado". Mas em dias de festa, as coisas mudavam. Sua carga eram bolos, biscoitos, doces e assados (frangos, lombos, leitoas). Ah! Dia de São João então... que delícia! Essa festa ali era tradicional, com direito às fogueiras, bombas, buscapés etc. Aliás, era sede de uma fábrica de fogos, a única da região.

    Quando minha irmã Yolanda concluiu o Curso Pedagógico, tornando-se professora, foi lecionar lá e passou a morar em casa de Madrinha. Apelidada familiarmente de Nenzinha, é minha madrinha - Dinha Nenza - e éramos muito apegadas. Sabe aquela irmã que cuida da mais nova desde bebê? Pois é. Preocupava-se com minha saúde, roupas, comidas, estudos, lanches... e adorava festejar meu aniversário, pois é uma boleira e doceira de primeira, além de artesã.

    Ela conta que ainda bebê eu era muito franzina mesmo. Mas muito esperta, vivaz. Então as amigas da minha mãe (que se chamava Ana Maria, mas tinha o apelido de Doninha), sempre diziam: "Doninha, essa menina não vai criar não! É muito miúda e ladinha!" Dai ela entrava em desespero e me levava para a Catedral, colocando-me aos pés de Santana e, chorando, pedia à santa para não me deixar morrer. E cá estou eu com mais de seis décadas de vida!

    Um lembrete: Madrinha Lourdes não era minha madrinha, mas, como caçula temporã, adquiri o hábito de chamar quase todas as minhas irmãs de Madrinha ou Dinha.

    Dinha Nenza arrumou um namorado por lá,Professor  José Pinheiro, e disso resultou casamento. Passei a visitá-los em todas as férias, passando ali pelo menos uma semana.

    Um detalhe sobre Ibiassucê: Todas as mulheres sabiam fazer bolos, doces, licores, costurar, bordar e fazer tricô e crochê. Em todas as casas havia toalhas e colchas maravilhosas. Tanto em crochê como em richilieu em linho. Engomadas e belíssimas!

    Creio ter sido a cidade onde vi mais mulheres prendadas em toda a minha vida.

    Por falar nisso, cadê o doce de leite de Dona Maria? Era feito em tabletinhos como a cocada. Leite puríssimo da vaca. Nunca mais comi outro igual! Lembro-me que uma garota saia vendendo-o em uma bandeja grande de alumínio. E ao vê-lo, meus olhos faiscavam de felicidade! Hum... que saudade!

    Adorava ir em casa dos sogros da minha irmã Yolanda. Dona Alice e Sr. Antoninho. Doces e serenos. Ela, miudinha. E as filhas que moravam com eles: Nita, Nãna e Lourdes e os filhos desta. Ali eu era tratada como uma rainha e degustava doces, bolos e biscoitos deliciosos!

    Ao lado da casa deles, havia um sobrado antigo (de Né Pinheiro) e muito bonito. Hoje é um prédio tombado e, salvo engano, no mesmo funciona a "Casa da Cultura". Também no mesmo estilo é o prédio da Prefeitura.

    Ao lado da escola onde minha irmã dava aulas, ficava a Igreja. Quantas novenas e quermesses vi ali! Todas comandadas por Detinho. Que saudade! Na quermesse, frangos assados e bolos eram enfeitados por recortes picotados de papel de seda colorido. Pareciam rendas. Lindos! As prendas eram doadas pelas famílias e arrematadas por quem "desse mais"!

    Vi o Distrito se tornar Município em 1962. Vi a campanha do seu primeiro prefeito, Benedito Nascimento, que teve como adversário o meu padrinho de batismo, Jorge Zeferino, que foi derrotado.

    A natureza foi pródiga naquele recanto. Além da belíssima lagoa, a flora e a fauna é abençoada. E por falar na flora, nunca vi umbus mais doces que aqueles. E o doce então... hummmm... que maravilha! Era famoso nos arredores! E quando chegava lá em casa, devorava fatias e fatias. Também o queijo e o requeijão, a manteiga de garrafa... Que bênção!

    Ibiassucê, para mim, era sinônimo de boa comida, boa acolhida, simplicidade. Não tinha padre e nem médico. Mas tinha Detinho que era diácono e dono de uma fabulosa mediunidade de cura. Conhecia os remédios naturais e alopatas como os melhores doutores, ou até muito mais! E era dono de um coração abençoado. Humilde, tratava a todos com carinho e praticava a caridade como só as grandes almas o fazem. Criou uma família unida e formou os filhos com dignidade, tendo dois grandes médicos, Dr. Roberto e Dr. Tadeu,  a seguir seu caminho e exemplo. O segundo foi um excelente prefeito daquela terra. Assim como Adauto.

    Saudades das férias da minha infância e pré-adolescência, naquela terra de mulheres abençoadas. Não só bordavam e faziam crochê, como falei acima, mas também eram divinas na cozinha. E em qualquer casa que a gente entrasse, era imediatamente convidada para degustar toda espécie de manjar caseiro. Povo hospitaleiro, simples e bom. Não é por acaso que a cidade hoje ostenta o título de CAPITAL DA AMIZADE.

    LUZMAR OLIVEIRA - [email protected] -WhatsApp: 71 991031847

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