• Caetité, pequenina e ilustre – Por Luzmar Oliveira

    09/05/2015 - 22:49


    CAETITÉ

    Tuninha de vira – uma personagem marcante na história de Caetité

               

    Este texto está sendo escrito por uma caetiteense, que viveu grande parte da sua vida em contato quase que diário com Tuninha e que teve sua infância e adolescência influenciada por ela, guardando, assim, inesquecíveis recordações do tempo desse convívio. Ao narrar algumas histórias, acentuo minha forma de perceber o perfil dessa mulher comprometida com os princípios da religião católica, que assistia assiduamente os atos da Igreja e era muito cuidadosa com a formação religiosa dos jovens da sua época que, também, frequentavam a Catedral de Nossa Senhora de Santana.

     

    A nova geração de caetiteenses não conheceu Tuninha. Não sei bem o ano em que ela faleceu, mas já faz algum tempo. Faleceu em pleno uso das suas faculdades mentais. Não sabíamos nada sobre a sua família e o seu passado. Mas ela preenchia todo o seu tempo com diversas atividades, principalmente ligadas à religião. Tive a minha infância, cresci, tornei-me uma jovem, convivendo com a figura desta mulher. E tenho certeza que muitos dos meus contemporâneos guardam lembranças vivas da sua atuação nos atos litúrgicos, da sua constância nas missas, nas novenas, nas procissões, nos sermões, enfim, em todas as manifestações da vida religiosa de Caetité. Não tenho ido nessa cidade frequentemente. Moro em Salvador e escrevo sobre um tempo de anos atrás. 

    Por que estou chamando-a de Tuninha de Vira? Não me lembro do seu primeiro nome. Deve ter sido Antonia. A complementação da expressão “de Vira”, conforme algumas pessoas a chamavam, deve ter sido derivada do apelido da sua mãe. Será que era Elvira? Só sei que ela era conhecida por Tuninha de Vira ou, simplesmente Tuninha. No nosso interior, principalmente na roça, era costume chamar as pessoas com o nome próprio, agregado ao nome do pai ou da mãe. É assim que sempre me chamavam em Caetité: Lia de Seu Nilo. Assim, eu era identificada como algo que pertencia ao meu pai. Os antropólogos que estudam as relações familiares devem dar explicações sobre isto. Voltemos para falar de Tuninha.

     

    Pelo seu comprometimento com os atos religiosos da Igreja Católica, ela tinha lugar reservado na Catedral de Senhora Santana (na Catedral existiam lugares reservados para determinadas pessoas).  Ela tinha uma cadeirinha onde ajoelhava, com uma almofadinha florada para não machucar os joelhos, em frente a um banco da capela do Coração de Jesus, lado esquerdo da Catedral, onde se concentravam os filiados ao Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, liderados por D. Celcina Teixeira, irmã do educador Anísio Teixeira.

     

    Pois bem, o cenário onde Tuninha atuava preferencialmente era nos espaços onde aconteciam os atos litúrgicos da Igreja Católica, principalmente na Catedral e nesses atos ela sempre exercia forte influência. Vou identificar alguns, que se renovavam a cada ano, onde ela desempenhava papel significativo, com a aquiescência e apoio dos clérigos da época, principalmente do saudoso Monsenhor Osvaldo Magalhães.

     

    - A primeira manifestação da Semana Santa em Caetité era marcada pela missa e procissão do Domingo de Ramos, data em que a Igreja comemora a entrada de Jesus na cidade de Jerusalém e aclamado Rei pelos seus seguidores. A Igreja se enfeitava toda de ramos e na procissão todos levavam galhos de palmeiras, simbolizando os ramos com que a população aclamava Jesus. Tuninha trabalhava intensamente na semana anterior a esta comemoração, enfeitando grande quantidade de pindobas trançadas, para que o clero, que se portava à frente da procissão, assim como para os fiéis, que levavam consigo estes adereços. Tinham ramos de vários tipos e tamanhos. O maior, bem enfeitado, quem levava era o bispo, outros, um pouco menores, eram levados pelos padres, com destaque aquele do Monsenhor Osvaldo e outros ainda menores, pelos vinculados às congregações. (Filhas de Maria, Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, etc.) Para os fiéis eram distribuídos outros ramos bem pequenos, mas todos enfeitados de papel de seda de várias cores. A semana de preparação era uma verdadeira festa na casa de Tuninha. Ela reunia várias adolescentes para cortar, picotar os papéis, que depois eram colados nos galhos das palmeiras. Lembro-me da cola que era usada e fabricada por ela própria, em uma cuia de coco. Ela fazia a cola com tapioca cozida e nós passávamos os dedos naquele “grude” para enrolar e prender os papeis nas pindobas. Não me perguntem como ela arranjava esses ramos, assim como os papéis de seda para enfeitarmos aqueles enfeites. Estas não eram preocupações nossas, das crianças e jovens. O certo é que a casa dela ficava cheia desses ramos que depois eram transportados para a Igreja. E Tuninha era a responsável por essa preparação da festa do Domingo de Ramos.

     

    - Na Semana Santa Tuninha também preparava as personagens que iriam encenar o ato da Descida da Cruz, na Sexta-feira da Paixão, depois do Sermão, em um palanque que era construído no lado esquerdo do adro da Igreja. Ela preparava as vestimentas das figuras representativas: de Maria, mãe de Jesus, dos apóstolos, de Maria Madalena e dos soldados. Findas as palavras do orador do sermão, eram encenados os últimos momentos de vida de Jesus. Depois de consumada a morte, era retirado o corpo da cruz que, de imediato, era colocado no colo de Maria. Nesse momento Maria Madalena entoava um canto, exibindo um pano com a imagem de Jesus coroado com espinhos, mostrando-o a todos os presentes, girando de um lado para o outro. À medida em que cantava, a cantora ia abrindo esse pano e depois fechando-o até concluir o canto. Para fazer o papel de Maria Madalena teria que ter cabelos grandes. Tuninha ficava atenta a todos estes detalhes. Pela proximidade que eu tinha com ela, participei de alguns desses atos, desempenhando alguns papeis nessas apresentações. E para esta encenação nossa protagonista treinava os participantes, fazendo vários ensaios. Mas a função de Tuninha nesta cerimônia não parava por aí.

     

    - Logo depois da encenação da Descida da Cruz, acontecia a Procissão do Senhor Morto. No final da procissão, Tuninha já estava a postos no interior da Igreja, próxima ao altar principal, onde era colocada a imagem do Senhor Morto.  Esperava o início da visitação dos fiéis que faziam filas para orar e beijar os pés dessa imagem. Tuninha, com uma bandeja prateada, sentada ao lado do Senhor Morto, acompanhava e controlava a coleta das oferendas dos fiéis. Para esses atos da Semana Santa acorriam muitos habitantes dos distritos e vilas do município, razão porque a Catedral ficava repleta de pessoas. Eu não sabia até quando Tuninha permanecia ali, à beira da imagem, exercendo aquela função, assim como quais os desdobramentos dessa sua missão como, por exemplo, como era feita a prestação de contas ao vigário da Paróquia sobre os recursos arrecadados. O certo é que Tuninha gozava da confiança dos clérigos e tinha prazer em desenvolver aquela atividade.

     

    - Nesta e em outras festas Tuninha recebia em sua casa uma quantidade grande de pessoas da comunidade de um distrito do município, do Palmitá. Era uma comunidade basicamente de negros que moravam próximo ao distrito de Santa Luzia, muito católicos, que tinha dois importantes líderes, Seu Martim e Zé Leite (este último, um professor leigo que se especializou em alfabetizar crianças, de casa em casa, na zona rural das localidades vizinhas ao distrito, a pedido das famílias, em decorrência da ausência de escolas na região). Era comum, em tempos de comemorações religiosas em Caetité, a casa de Tuninha ficar literalmente repleta desses hóspedes. Ela recebia a todos com muita satisfação.

     

    - Fora da Semana Santa, Tuninha preparava turmas de crianças que iriam completar sete anos de idade, para fazerem a Primeira Comunhão. Foi ela quem me preparou nos ensinamentos dos dogmas da religião e orientou a minha mãe com relação à confecção da vestimenta e à compra dos acessórios (o livrinho, o terço, a vela enfeitada, todos com a cor branca). A preparação de uma turma se dava através de aulas de catecismo. Lembro-me das aulas na sua casa, quando tínhamos que decorar as respostas às perguntas que ela fazia. A primeira pergunta feita todos os dias para começar as aulas era: Quem é Deus? Lembro-me também de como deveríamos responder a uma pergunta difícil de ser respondida ou compreendida sobre o mistério da Santíssima Trindade. Como poderíamos entender que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo, também é Deus, mas que só existia um Deus. Ela explicava que nós não tínhamos a capacidade de entender este mistério. Só deveríamos acreditar porque era uma verdade. E como Maria Santíssima pôde ser concebida sem o pecado original, sendo que todos nós já nascemos com ele? E que Jesus Cristo foi gerado por obra e graça do Espírito Santo, sem interferência nenhuma do seu esposo, São José. Tínhamos que acreditar, sem entender. Se decorássemos as respostas e repetíssemos fielmente da forma como eram determinadas, estávamos aptos a fazer a Primeira Comunhão. Depois deste ato a família marcava um dia, com Seu Fraga, o fotógrafo, para tirar o retrato com as vestes, a vela, o terço, ajoelhados em uma cadeirinha coberta com um pano branco, na casa dele, lá no final da Rua Barão.

     

    - Tuninha também era responsável por vestir os anjos para as festas da Igreja, principalmente para as procissões. Ela orientava às mães como deveriam fazer as vestimentas e como colocar as asas. Esses anjos se posicionavam no altar em dias de festas ou abriam as alas das procissões. Por eu ser próxima dela, além de ser vizinha da mesma rua, participava de todas essas manifestações. Eu tinha o meu vestido de anjo particular e as minhas asas, de cor branca. Muitas das minhas colegas de escola desejavam também vestir de anjos, mas somente as conhecidas e próximas de Tuninha tinham essa ventura. Mesmo com as asas me apertando, eu adorava vestir de anjo. Nas procissões do Senhor Morto algumas vezes tínhamos que carregar os cravos pesados que suportavam a imagem de Jesus crucificado na cruz. Isto nos deixava com dores nos braços durante toda a semana seguinte. Mas era o sonho de toda menina, nesta fase em Caetité: vestir de anjo. Quando cresci mais um pouco, minha irmã, Marli, ficou no meu lugar. Vestia de anjo em todas as comemorações, fazendo par com Katia Cerqueira, Gracinha Prisco ou Conceição Prisco, para a frustração de muitas das suas colegas. Toninha nos arrumava, levava-nos para a Igreja, nos posicionava no altar, nos acompanhava nas procissões até o final das comemorações. As mais desejadas dessas comemorações eram as coroações dos santos e em cada ano, a maior glória vivenciada por uma menina era a de ser escolhida para coroar Nossa Senhora no dia 31 de maio e a escolha era de Toninha, não sei por qual critério.

     

    - Por influência de Tuninha me tornei “Filha de Maria”. Passei a fazer parte de uma Congregação onde só admitiam moças que eram muito frequentes aos atos da religião, que seriam comprovadamente comportadas e que se comprometiam a seguir os códigos e proibições da irmandade. Tínhamos reuniões e comemorações específicas e participávamos dos atos religiosos comemorativos vestidas com roupa e véu brancos e uma faixa azul na cintura. Confesso que tive algumas dificuldades para seguir essas normas. Por exemplo, era proibido dançar, coisa que eu adorava. Tuninha era muito atuante nesta irmandade e me levava a tiracolo em todas as manifestações.

     

    - Tuninha era também pertencente ao Apostolado do Coração de Jesus, outra irmandade, como já assinalado anteriormente, que se concentravam na capela à esquerda do altar mor da Catedral.  Esta entidade também fazia reuniões constantes, desenvolvia algumas atividades de evangelização e seus associados tinham lugar reservado nos cortejos religiosos. Seus fiéis usavam para se identificarem o véu branco ou preto e uma insígnia vermelha.

     

    - Outras ações ligadas à religião mas que não aconteciam na Igreja, ocupavam o tempo e a atenção de Tuninha, dando a sua personalidade uma característica marcante em termos de liderança. Veremos algumas:

     

    - Mesmo não sendo uma atividade litúrgica mas uma manifestação de ordem cultural ligada à religião católica, talvez trazida pelos nossos ancestrais portugueses, os bailes pastoris aconteciam logo após a entrada do ano novo, no período de Reis (6 de janeiro). Tuninha, em algumas ocasiões preparava a encenação de um desses “bailes”, reunindo meninas conhecidas que cantavam e dançavam em torno de uma narrativa em frente ao presépio, que tinha como eixo argumentativo a louvação do Menino Jesus. As letras das cantigas eram longas (como ela tinha tudo na sua memória! Os textos não estavam escritos!). Levava muito tempo para que aprendêssemos essas cantigas. Lembro-me de um deles em que participei, onde Marilourdes de Seu Nathan, minha colega, tinha uma participação longa que exigia dela um grande esforço de memorização. Mas ela deu conta. Apresentávamos em várias casas em frente ao presépio, com roupas características, onde, depois da apresentação, as donas das casas nos ofereciam uma merendinha.

     

    - Outra atividade ligada à religião era a comemoração que Tuninha organizava na sua casa todo o dia 02 de fevereiro, quando ela celebrava o dia de Nossa Senhora das Candeias. Ela organizava um altar em um quartinho pequeno, perto da sala de visita para rezar e cantar uma “novena” em homenagem a esta santa, nesse dia. Em todos os pontos da casa ela acendia pequenas lamparinas e a casa ficava toda iluminada (e quente). As lamparinas eram de barro cru onde era acondicionada uma porção de azeite tendo um pedaço de cordão de algodão que pendia e ardia em chama. Na minha infância, eu achava isto encantador, ainda mais porque este dia era o aniversário do meu pai.

     

    Além do grande trabalho que Toninha dispensava para a Igreja e que revelava sua religiosidade e compromisso com os seus princípios, ela me mostrava uma pessoa com grande sensibilidade artística e estética, além de uma mulher prendada. Conhecia música (“tirava” músicas, solfejando as partituras). Sabia bordar e costurar. Com ela aprendi a bordar “ponto de cruz”, a fazer crochet e labirinto. Pena que as lidas da vida moderna me afastaram dessas atividades tão prazerosas e que nos fazem calmos e serenos.

     

    Tuninha de Vira teve uma atuação muito forte na vida religiosa e cultural de Caetité no período em que viveu até a sua morte silenciosa. Não deu trabalho a ninguém. Sem parentes próximos, ela conviveu de forma harmônica com os vizinhos e com os companheiros da religião. O menino Expedito, que morava na nossa casa, sempre levava à noitinha o seu jantar e encontrava-a recostada na sua cadeira preferencial, na sala de visita da sua casa, pois ela costumava cochilar nessa hora. Mas certo dia, Expedito viu-a com a cabeça voltada para trás, já sem vida, encerrando assim um capítulo importante de um personagem do cotidiano da então pacata Caetité, em meados do século passado.

     

    Salvador, maio de 2015

    MARIA COUTO CUNHA

    Lia de Seu Nilo

     

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